Desde que o encerramento das escolas foi decretado, tem-se verificado uma grande disparidade na forma como os diferentes agrupamentos de escolas têm delineado e implementado os respetivos planos de Ensino a Distância (EaD). O Ministério da Educação pretendeu, em tempo recorde, dar resposta a uma situação excecional e para a qual as escolas não estavam preparadas. Não tardou para que muitos “gurus” viessem apelidar o momento de ponto de viragem no ensino português, uma verdadeira revolução.
Imediatamente se assistiu a algumas direções de escolas a antecipar-se, de certa forma, às orientações da tutela. E assim, na senda da famigerada autonomia, alguns diretores de escolas, na tentativa de serem os primeiros, implementaram “duros” planos de operacionalização, levando docentes a terem formação em contrarrelógio sobre diversas plataformas online, durante as interrupções letivas, sem tempo para absorver o impacto e as mudanças que o coronavírus estava a ter no país e nas famílias.
Na reabertura do 3.º período, alguns agrupamentos de escolas alteraram os horários das turmas, impuseram sessões síncronas por videoconferência, com duração de aula decidida de forma aleatória consoante os agrupamentos (35, 40, 50, 90 minutos). Tudo imposto por algumas direções, sem que o Ministério da Educação tivesse obrigado a tal. Pior, sem ter em conta o efeito que todas essas mudanças repentinas poderiam ter no estado emocional dos alunos e nas famílias em confinamento.
Acresce, ainda, que apesar de todas as advertências sobre a falta de segurança de certas plataformas e as interrogações relativas a questões de alegadas violações de privacidade (ainda sem a publicação do relatório do Conselho Nacional de Proteção de Dados), assistiu-se a uma verdadeira “fuga para a frente” de certos agrupamentos que insistiram em utilizar plataformas que se sabia à data serem inseguras. Como se Edward Snowden nunca tivesse existido e alertado para problemas de segurança e privacidade online. Não foi necessário muito tempo para se assistir às consequências das decisões tomadas extemporaneamente, quando vieram a público imagens de professores e alunos alvo de “zoombombing” por terceiros.
Sem tempo para se adaptarem à nova realidade, os professores acabaram por ser cobaias. E tanto precisavam de tempo para planificar e perceber como realizar a sua “práxis” neste novo cenário. Não o tiveram. O encerramento de escolas confinou os docentes nas suas casas, com as tarefas que daí advêm para qualquer cidadão, sobretudo se tiverem menores ou idosos a seu cargo; mas as responsabilidades e a demanda de trabalho aumentaram substancialmente, com solicitações online contínuas, pelas escolas e pelos seus alunos. É importante referir que uma parte substancial do trabalho docente, num ano letivo dito normal, consiste em repensar e reorientar a sua prática continuamente; aliás, poucas serão as profissões que obriguem, fora do horário laboral, a repensar por completo as estratégias e a forma de atuação, dada a diversidade de situações que a escola pública (e bem) integra. As escolas não são fábricas e os alunos não são meros autómatos. Todos os anos, os professores lidam de perto com as necessidades e carências dos seus alunos (e respetivas famílias) e sabem que, por detrás dos computadores, existem neste momento famílias preocupadas com os efeitos deste novo vírus nas suas vidas. As escolas desempenham, também (e sobretudo) nesta altura, um papel social. Então, como podem, conscientemente, os docentes fazer “tábua rasa” destas situações e continuar a introduzir novos conteúdos, enviar propostas de atividades, definir datas de entrega de trabalhos? Como pode não haver um dilema e um “sofrimento ético”? E para quem pensa que entregar computadores a todos os alunos poderia resolver o problema das desigualdades que o EaD agudiza, não está a ter em conta que para aprender é necessário mais do um equipamento ligado à internet: é necessário um lar estável e um ambiente propício à aprendizagem.
Desde o início que defendi que os professores deveriam, nesta altura difícil, ser um apoio dos alunos, agindo com bom senso, e não se constituírem como um veículo de hostilização e tensão acrescida para os alunos e famílias. Todas as escolas que deliberaram e incentivaram o seu corpo docente a seguir esta via estão, na minha opinião, não só do lado certo da História, como do lado dos alunos e das suas famílias.
Talvez decretar o fim do ano letivo não tivesse sido uma péssima ideia, à semelhança do que fizeram outros países. sem que tal representasse uma derrota governamental, mas antes uma vitória. Uma vitória para os docentes e para as próprias escolas, que ganhariam tempo para repensarem o próximo ano letivo, com orientações ministeriais claras. Ao mesmo tempo, as famílias poderiam ganhar alguma paz num momento tão difícil como o atual.
Tem-se assistido, igualmente, a algumas tentativas de “forçar” um pensamento único no que toca ao EaD em tempos de pandemia. No entanto, penso que os desafios que esta nova realidade suscita exigem um debate em que sejam tidas em conta várias perspetivas. E para não ser visto como mais um “pessimista” face à pretensa “revolução” que muitos apontam para o momento atual do ensino, gostaria de deixar algumas reflexões adicionais.
Primeiro, seria necessário fazer uma análise cuidada sobre a implementação dos atuais modelos de EaD, longe das menções honrosas e das palmadinhas nas costas daqueles que foram mais longe do que lhes foi pedido. Dessa análise poderia resultar um modelo de EaD delineado a nível nacional, sem os desvarios e experimentações de alguns maus exemplos oriundos da autonomia das escolas. E, dessa forma, salvaguardar também os direitos que, nesta fase, parecem ter sido “engolidos” pelo EaD, prendendo todos a uma nova realidade hiperburocrática e exercendo uma pressão psicológica digital constante. A tecnologia deve estar ao serviço da educação, não ao serviço de uma servidão digital como a que se tem instalado aos poucos pelas escolas do nosso país.
Por último, face à perspetiva de ser necessário continuar a implementar EaD, é preciso aceitar, de uma vez por todas, que a realidade socioeconómica dos alunos não é alheia ao desempenho escolar. Reconhecer isso é reconhecer o trabalho que se faz diariamente, nas escolas públicas, desde os assistentes operacionais aos professores e direções de agrupamento, ao invés de se atribuir demasiada atenção, por exemplo, aos elogios aos lugares nos “rankings” obtidos pelas escolas privadas.
Ricardo Santos
Professor do Ensino Básico e Secundário