Tempos modernos, jornadas antigas[1]

Autor: Pietro Basso[2]
Tradução: António Paço

 

1) A tendência geral

Há mais de três séculos que capitalistas e proletários estão em conflito sobre a duração da jornada de trabalho. No 1.º volume de O Capital, Marx definiu isso como uma “guerra civil prolongada e mais ou menos escondida entre a classe capitalista e a classe trabalhadora”, um confronto radical numa ampla frente entre a classe que possui o tempo social e a classe que é forçada vender o seu tempo de vida para poder viver.

O pico na Europa e nos Estados Unidos, as primeiras partes do mundo onde a indústria moderna se desenvolveu, ocorreu entre 1848 – quando foi introduzida brevemente, mesmo muito brevemente, uma jornada de trabalho de dez horas na Grã-Bretanha e na França – e o período de 1917-1919. Mais tarde, no ápice do ciclo revolucionário do início do século XX, o proletariado conquistou a jornada de oito horas na Rússia, Alemanha e (na indústria mecânica) Itália, após uma luta internacional e internacionalista de décadas. Essa conquista logo enfrentou um contra-ataque capitalista, e na Segunda Guerra Mundial foi totalmente anulada com a colocação da classe trabalhadora sob uma disciplina de tipo militar. Na Fiat de Turim, para citar apenas um exemplo, os trabalhadores eram obrigados a trabalhar a “maldita jornada de 12 horas”.

Após a Segunda Guerra Mundial, durante vinte longos anos, os baixos salários e as longas horas de trabalho (6 dias por semana) prevaleceram na Europa. Só no final dos anos 60 a luta para reduzir as horas de trabalho se reacendeu na Itália (e não só), em torno do objetivo duplo da semana de 40 horas com pagamento igual à de 48 e limites estritos às horas extra. Eram objetivos bem mais modestos do que uma redução significativa da jornada de trabalho e, em parte, convergiam com os interesses capitalistas de estimular o consumo da classe trabalhadora. Nos anos que se seguiram a 1968-69, a única luta digna de nota na Europa Ocidental ocorreu na Alemanha, com os metalúrgicos e os gráficos na vanguarda, e em 1984 estes conseguiram arrancar aos patrões um acordo de 35 horas.

As coisas evoluíram de forma diferente em França, onde em 1998 o governo Jospin apresentou uma legislação muitíssimo complicada com uma semana de 35 horas que prometia aos empregadores 150 mil milhões de euros em reduções de impostos ao longo de quinze anos, mas não garantia uma redução geral ou realmente significativa no horário de trabalho. De conjunto, a jornada normal de trabalho na indústria europeia e ocidental permaneceu estagnada em torno das oito horas, mas no contexto de um enorme aumento na produtividade do trabalho e na densidade do tempo de trabalho. Isto tão pouco foi suficiente para os capitalistas. A partir da crise de meados da década de 1970, as empresas começaram a pressionar por mais horas de trabalho em todas as dimensões (diárias, semanais, mensais, anuais e ao longo de toda a vida). Entretanto, o desemprego e formas extremas de precarização do trabalho cresceram como resultado das políticas “neoliberais”, que terminaram com contratos de zero horas e vários tipos de colocações e estágios. Uma coisa alimentou a outra numa espiral aparentemente interminável.

A dinâmica “espontânea” do mercado de trabalho e as decisões dos dirigentes das empresas foram reforçadas de mil maneiras pela intervenção dos governos. Basta lembrar o Hartz IV de Schroeder na Alemanha, a Lei do Emprego de Renzi em Itália, a Lei do Trabalho de Macron em França, as reformas introduzidas por Rajoy em Espanha e Passos Coelho em Portugal, a “lei da escravatura” de Orbán na Hungria e a nova “lei dos horários de abertura” na Áustria. Esta mudança nas políticas de estado também são evidentes fora do Ocidente. Há alguns anos atrás, na China, por exemplo, após uma certa redução na média de horas de trabalho, Xi Jinping lançou uma nova palavra de ordem: “Vamos todos arregaçar as mangas e trabalhar mais duro!” – que logo apareceu em publicidade na televisão. No Brasil, a “modernização” da legislação laboral promovida por Temer & Cia previa uma jornada normal de trabalho de 12 horas, a semana de 48 horas e 220 horas mensais.

A “ganância do capitalismo contemporâneo”, nota Jonathan Crary, anseia pelo fim de todos os limites ao tempo de trabalho, num mundo em que até o sono – que não produz valor – estará sob ataque. As delícias desse mundo já são vividas em Itália por mais de um milhão de mulheres ucranianas, russas, moldavas, filipinas e peruanas que trabalham nos cuidados de saúde. Em suma, o que está a ocorrer à escala global é um drástico duplo desperdício das capacidades de trabalho (energias vitais) de milhares de milhões de proletários. Centenas de milhões de trabalhadoras e trabalhadores estão sujeitos a uma carga de trabalho opressiva, enquanto outros tantos (ou mais) homens e mulheres assalariados são tornados inativos contra a sua vontade e as suas expectativas, ou forçados a sobreviver com empregos irregulares e humilhantes na gig economy, ou economia “uberizada”, muitas vezes com horários (e salários) mais reduzidos. Apesar de toda a mistificação e ocultação, essa tendência radicalmente antissocial é um facto incontestável.

E é uma contradição fundamental, potencialmente explosiva na relação entre capital e trabalho assalariado, que mais uma vez está a dar um lugar objetivamente central à luta por uma redução drástica e geral da jornada de trabalho sem redução de salários. Esta é a única perspectiva histórica a esse respeito que é capaz de promover a reunificação da classe trabalhadora, uma classe hoje sujeita a impulsos internos divisionistas e dividida por uma competição cada vez mais intensa.

2) Porquê e como chegámos aqui?

Se quiséssemos simplificar, poderíamos dar a seguinte resposta a esta pergunta. Chegámos aonde estamos hoje porque o capitalismo nada mais é do que produção para um excedente de trabalho (ou mais-valia) ilimitado, em quantidades sempre crescentes. Visto que o trabalho excedente nada mais é do que um conjunto de átomos de tempo – ou, para ser mais preciso, átomos de tempo de trabalho não remunerado coletivamente extraído à classe dos produtores diretos pela classe dos proprietários dos meios de produção – é óbvio que as empresas irão continuar a procurar obter o máximo de tempo de trabalho não remunerado possível.

Não há nada de errado nesta resposta, mas é demasiado simplista. Porque embora as leis que regulam o modo de produção capitalista sejam as mesmas do começo ao fim, o curso histórico do capitalismo e as suas contradições não são uma espécie de eterno retorno do que já aconteceu; é antes um processo em espiral, no qual o antagonismo capital-trabalho se torna mais profundo e mais nítido num território cada vez maior. A situação atual, portanto, deve ser analisada como o resultado da evolução do capitalismo num longo período e da história da luta de classes em torno da jornada de trabalho.

Na minha opinião, existem cinco razões básicas interativas e fortemente entrelaçadas para a tendência a termos horários de trabalho mais longos (a começar pela duração da jornada de trabalho) na Itália e em todos os outros países ocidentais: (1) a feroz resposta capitalista à queda da taxa de lucro entre 1945 e 1982, a mais prolongada e pronunciada da história do capitalismo; (2) a crescente competição direta, em quase todos os ramos de produção e (aos poucos) na circulação de mercadorias, entre os trabalhadores do Sul global (sujeitos a jornadas de trabalho mais longas e a mais dias de trabalho que a média internacional) e os dos países ocidentais – sob o impacto da globalização da produção industrial, que, numa reversão da situação de há 70 anos, significa 80% da produção relocalizada no Sul contra apenas 20% no Norte; (3) o uso pelos capitalistas das migrações internacionais, cujas raízes são o desenvolvimento desigual herdado do colonialismo clássico, os níveis de dívida externa que sufocam tantos países do Sul e Leste globais, a transformação capitalista da agricultura sob o controle do agronegócio e a cadeia infinita de guerras neocoloniais, mas também a aspiração generalizada, especialmente entre as mulheres do Sul, de terem uma vida que valha a pena; (4) a formação do maior exército industrial de reserva da história do capitalismo: cerca de mil milhões de desempregados e subempregados que são obrigados, como os trabalhadores imigrantes o são por mil e uma leis especiais, a aceitar formas extremas de insegurança no trabalho e sobre-exploração, variando entre contratos de zero horas, programas de pagamento de trabalho por  vouchers, diversas formas de colocação no trabalho ou o trabalho voluntário totalmente não remunerado exigido a muitos candidatos a refugiados; (5) o aumento acentuado na parte da jornada de trabalho de que os capitalistas se apropriam sem recompensa, uma tendência que reflete o crescimento exponencial da produtividade e da intensidade do trabalho devido ao impacto do taylorismo, da mecanização, automação e informatização dos processos de produção, e métodos de produção sem desperdício associados ao “toyotismo”. Tudo isso significa que as empresas consideram que uma expansão significativa é cada vez mais problemática se os horários de trabalho médios permanecerem os mesmos.

Daí a tendência para reintroduzir jornadas de trabalho mais longas. Talvez valha a pena repetir o que dissemos antes. O capital vive para aumentar, para acumular capital. Só pode fazer isso usando todo o seu poder para se apropriar de tempo de trabalho não remunerado, de trabalho excedente (mais-valia) e da imposição da reprodução da força de trabalho na família, de modo que essa função das mulheres também possa ser apropriada gratuitamente. Se o mecanismo não funcionar plenamente, o capital sofre e esgota-se: corre o risco de asfixia. Por isso reage “rosnando e contra-atacando”, como dizia Marx, contra qualquer tentativa do proletariado de obter uma redução da jornada de trabalho. E tão pouco vê com bons olhos – longe disso! – as lutas das mulheres para socializar a reprodução da força de trabalho e extirpar a hierarquia de género.

 

3) Ontem e hoje

A feroz resistência capitalista a uma redução da jornada de trabalho era uma realidade no passado, quando as pessoas trabalhavam 16 horas por dia (embora com horários um pouco mais porosos); e era ainda mais uma realidade no início do século XXI, quando a jornada de trabalho foi reduzida para cerca de 8 horas nos países ocidentais e 9-10 horas noutros (a média atual na China, por exemplo, é de 9 horas e meia na indústria automobilística). Por que é que essa resistência é mais real hoje? O uso de capital constante (maquinaria) cresceu fortemente na produção: o problema é que estas não produzem lucros – os capitalistas não recebem as máquinas como presentes, têm de comprá-las a outros capitalistas –, enquanto o capital variável, ou força de trabalho, o único fator de produção que gera mais-valia e, portanto, lucros, diminuiu muito em termos relativos desde 1917-1919, ou mesmo 1975. Aqui, uma passagem dos Grundrisse é obrigatória:

Quanto maior o valor excedente do capital antes do aumento da força produtiva, maior a quantidade pressuposta de trabalho excedente ou a mais-valia do capital (…), ou quanto menor for a fração da jornada de trabalho que constitui o equivalente do salário do trabalhador, a fração que expressa o trabalho necessário, menor é o crescimento do valor excedente que o capital obtém do aumento da força produtiva. (…) Consequentemente, quanto mais desenvolvido o capital, quanto mais trabalho excedente criou, tanto mais extraordinariamente tem de desenvolver a força produtiva do trabalho para valorizar-se numa proporção ínfima, i.e., para agregar mais-valia – porque o seu limite continua a ser a proporção entre a fração da jornada que expressa o trabalho necessário e a jornada de trabalho total. O capital só pode mover-se no interior dessas fronteiras. (…). A autovalorização do capital torna-se mais difícil à medida em que ele já está valorizado (…).[3]

Em geral, portanto, quanto mais a quantidade e a função do trabalho vivo no processo imediato de produção são rapados até ao osso, mais próximo o tempo de trabalho se aproxima da densidade máxima possível, e menos a jornada de trabalho corresponde ao salário (Marx chama a isso o “tempo de trabalho necessário”), mais qualquer novo aumento na produtividade do trabalho, em vez de favorecer, acaba objetivamente por impedir aumentos de médio prazo na taxa de lucro e qualquer redução imediata da jornada de trabalho ou da massa de desemprego. Uma complicação adicional, não prevista por economistas e capitalistas, é que paradoxalmente (para eles, embora não se seguirmos a análise e diagnóstico de Marx) a revolução tecnológica em curso não está, pelo menos por enquanto, a produzir os esperados e proclamados aumentos da produtividade.

A razão para isso é que, por meio de uma combinação de taylorismo e toyotismo, mecanização forçada e automação / robotização precoce, a produtividade do trabalho já atingiu níveis excepcionalmente altos. Entre os especialistas burgueses no assunto, há muita decepção com os resultados obtidos nos últimos vinte anos. Consequentemente, as empresas guiadas pelo seu sentido prático têm pressionado por mais horas de trabalho e por cortes salariais de um tipo ou de outro, com um retorno cada vez mais sistemático à mais-valia absoluta. É por isso, e não apenas pela crescente dependência da mão-de-obra viva da maquinaria informática, que o despotismo no local de trabalho e a repressão e prevenção da atividade sindical se têm intensificado. E é por isso que a força de trabalho “residual” tem de ser espremida ao máximo, através da eliminação metódica dos limites de tempo de inatividade para uma maior “racionalização” da exploração do trabalho vivo.

Para os capitalistas, um alongamento do tempo real de trabalho está a tornar-se indispensável: significa deslocar os relógios de ponto dos portões das fábricas para as entradas das secções, cortar pausas, diminuir as taxas de absentismo, reduzir as férias e feriados pagos, tornar as horas extraordinárias obrigatórias, transformar sábados e domingos em dias normais de trabalho, aumentar a idade da reforma. Em Itália e noutros países da Europa Ocidental, a chantagem da deslocalização, o desemprego galopante, novas formas de trabalho de aprendizes e estagiários, o uso crescente de mão de obra imigrante são outras tantas armas para impor essa reviravolta a dezenas de milhões de trabalhadores.

E isso acontece em países apresentados como eldorados das semanas de trabalho mais curtas; o ministro da Economia dinamarquês, Brian Mikkelsen, por exemplo, já o deixou bem claro: para “marchar” na frente, a Dinamarca tem de tornar-se “um país onde as pessoas estão dispostas a trabalhar mais, mesmo todos os dias”. É um retorno à querida mais-valia absoluta, conseguida, dialeticamente, pelo recurso máximo à mais-valia relativa.

Os governos têm promovido a tendência para o aumento da jornada de trabalho, por exemplo com a redução de impostos sobre horas extras, bem como contrarreformas no sistema de pensões e a introdução de formas extremas de precarização do emprego. Na Europa, ao lado e acima dos governos nacionais, o Banco Central Europeu tem pressionado constantemente por “reformas” que desvalorizem sistematicamente a força de trabalho, e a UE adotou normas quase criminosas, como as dos pilotos de avião que normalizam as 11 horas de voo noturnas, turnos contínuos de 14 horas e períodos de vigília de 22 horas antes de uma aterragem. A Expo 2015 em Milão, onde predominava claramente o trabalho não remunerado ou o mero reembolso de despesas, simboliza a nova era da precariedade estrutural; a obrigação dos requerentes de asilo de trabalhar de graça, imposta por um número crescente de municípios, está a empurrar os limites ainda mais (isto é, para trás, em direção ao trabalho de corveia), enquanto as reformas educacionais “buona scuola” que o governo Renzi introduziu em 2017, estão a preparar milhões de alunos do ensino superior para este admirável mundo novo (velho).
A referência aos chamados “serviços” (transportes, feiras industriais, serviços locais, educação, etc.) não é fortuita. Até agora falei quase apenas da indústria, porque mesmo na chamada sociedade pós-industrial (que na realidade é uma sociedade neo-industrial) a organização do tempo de trabalho na indústria (em sentido estrito) tem um peso decisivo também para outros sectores. Na verdade, desmentindo toda a conversa sobre uma sociedade terciarizada, a verdadeira “terciarização” em curso com a disseminação das relações de trabalho informais é uma das principais causas do aumento da jornada de trabalho. No sector dos serviços, as horas são particularmente longas no comércio grossista e retalhista, nos hotéis e restaurantes, nos transportes e comunicações. Normalmente, também envolvem turnos e horários “antissociais”: a OIT afirma isso mesmo num estudo global publicado em 2007, no qual, no entanto, subestima escandalosamente a duração real da jornada de trabalho, como continuou a fazer num relatório mais recente. De facto, os chamados serviços são a área onde as novas e mais extremas formas de trabalho informal e precário se espalham mais rapidamente.

 

4) Por que há tão poucas lutas sobre o horário de trabalho?

Portanto, jornada de trabalho maior para pessoas com empregos mais ou menos estáveis e maior número de desempregados e trabalhadores precários ou muito precários. Estas duas tendências impõem-se simultaneamente ao proletariado, dividindo os trabalhadores e opondo-os uns aos outros. Na era dos contratos de zero horas, pagamentos por vouchers, estágios e trabalho a tempo parcial nas condições mais sombrias, trabalhadores precários e ultraprecários procuram, quase sempre individualmente, contratos estáveis a tempo inteiro. E mesmo que, raramente, essa “busca” assuma uma forma coletiva e envolva luta organizada – como aconteceu em Itália no caso dos trabalhadores de portaria e logística – o objetivo foi (e é) conseguir um emprego seguro e contratos de tempo integral, ao contrário da prática corrente de trabalho à la carte (especialmente em contratos a prazo fixo, subcontratação e cooperativas), que varia muito conforme se está preparado para engolir sapos ou não.

No polo oposto, a parte da classe trabalhadora que ainda tem uma relação de trabalho mais estável, em tempo integral, acaba por aceitar horários de trabalho mais longos –rosnando e às vezes até protestando – para manter o que tem. O menor poder de compra dos salários e o aumento do desemprego, que afeta as famílias proletárias em particular, empurram na mesma direção. Com tudo isto em mente, não é difícil entender porquê nas últimas quatro décadas – no Ocidente – não houve movimentos importantes exigindo a redução da jornada de trabalho. Grande parte da responsabilidade por esta reversão recai sobre as instituições sindicais e os partidos de esquerda, que, em nome das maiores exigências das empresas e da competitividade dos seus capitalismos nacionais, aceitaram primeiro o princípio e depois a prática da “flexibilização”, abrindo as portas a jornadas de trabalho mais longas e pesadas.

Na Itália e noutros países ocidentais, a paralisação da luta pela redução do horário de trabalho desenvolveu-se, é claro, num período em que a classe trabalhadora em geral mostrou pouca disposição para lutar. Mas a situação não parece ser muito diferente nos países do Sul global. Aí, nas últimas duas ou três décadas, a luta da classe trabalhadora foi muito mais viva e envolveu muito mais trabalhadores do que no Ocidente. Mas com a única exceção dos trabalhadores do Metro de Buenos Aires, que acabaram por conquistar uma jornada de seis horas, as suas reivindicações nunca se centraram numa redução nítida das horas de trabalho. Mesmo onde as lutas foram numerosas e tiveram um grau impressionante de apoio – na China, Bangladesh, Índia, África do Sul e outros – estas quase sempre estiveram centradas em aumentos salariais, pagamento de salários em atraso, despedimentos, condições de higiene e segurança, privatizações, investimentos estrangeiros, o reconhecimento de direitos democráticos no local de trabalho, as contrarreformas das pensões e outras questões relacionadas com o “estado social”.

Noutros países, como no Egito, Tunísia ou Coreia do Sul, as lutas fizeram reivindicações políticas importantes, às vezes culminando na queda dos regimes no poder, mas a questão de uma redução geral importante das horas de trabalho quase nunca esteve na agenda. A razão para isto é que, nas economias emergentes, a grande maioria dos proletários veem as longas jornadas de trabalho como uma etapa necessária para melhorar as suas condições materiais, melhorar a sua capacidade de consumo, constituir família (se forem jovens ) ou reunir a existente (se forem migrantes), para permitir que os seus filhos estudem e – para um número pequeno, mas não insignificante – serem donos da sua própria casa. Nos países mais atrasados, onde os “trabalhadores vulneráveis” podem chegar a 80% da população ativa, até mesmo um trabalho com jornadas longas ou muito longas é considerado, e na verdade é, uma forma de combater a pobreza extrema.

 

5) Caprichos capitalistas e armas letais

Vários representantes do grande capital alertam que, à medida que a revolução robótica atinge a maturidade total e os instrumentos de TI de segunda e terceira geração entram em operação, as tendências acima referidas podem levar um grande número de jovens (e não apenas eles) a um estado de desemprego ou subemprego crónicos. O perigo é duplo – para a ordem social e para a acumulação de capital –, pois pode reduzir permanentemente o poder de compra da massa de assalariados e desencadear uma tendência igualmente permanente de contração dos mercados nacionais e do próprio mercado mundial, não apenas para bens de consumo corrente. Isso interferiria seriamente no processo de reprodução ampliada e incessante do capital, seja pelos perigos sociopolíticos, seja pelo risco para a própria economia (apesar da capacidade do capital global de produzir mercadorias para consumo de massa a um custo cada vez menor).

Entre os representantes e porta-vozes do grande capital, debatem-se as formas mais eficazes de enfrentar esse perigo incipiente. Muito poucos no topo consideram sequer uma redução mínima dos horários de trabalho. Quando há alguma declaração inteligente nessa direção (como a de Larry Page, da Google, em 2014),[4] sentimos que estamos a ser presenteados com uma boutade extravagante em vez de algo sério. Quanto a uma redução geral drástica do tempo de trabalho, nenhum deles se preocupa com isso. A verdadeira discussão, apenas parcialmente pública, centra-se nas formas e condições de um “rendimento garantido”, sendo dado como certo que isso nunca poderia ser equivalente ao salário de um trabalhador médio, mas envolver apenas formas transitórias de suplementar o sustento dos mais pobres, uma espécie de “rendimento de sobrevivência” parcial para sustentá-los; quase nunca seria de aplicação geral, ou seja, quase nunca incluiria todas as pessoas em situação de desemprego.

O que está implícito em todas essas propostas vindas dos capitalistas é uma aceitação dos níveis crescentes de desemprego, como se a existência de um número cada vez maior de pessoas sem emprego fosse um destino inexorável. Em suma: o alcance do problema, que nalguns casos foi bem identificado, é enorme, novo e explosivo. Mas, uma vez que as únicas soluções racionais, socialmente racionais, são excluídas, as que temos à mão são completamente insuficientes ou vagas e inconclusivas. Entretanto, a temida tendência continua a devorar quilómetros, isto é, a devorar seres humanos de carne e osso. O único antídoto em jogo são os vários tipos de “benefícios suplementares” ou “apoios sociais” aos desempregados e subempregados, limitados em alcance e na duração, enquanto a desvalorização (direta e indireta) do trabalho tem avançado ainda mais, com tendências mais fortes no sentido de horários mais longos e trabalho executado por uma ninharia cada vez mais perto de zero. Para entendermos como são sólidas essas tendências, é importante observar que a última geração de empresas de maior sucesso no mercado mundial (Amazon, Walmart, Zara, RyanAir e quejandos) pressiona nessa direção.

Têm em comum a sobre-exploração, direta ou indireta (através da subcontratação) de proletários no Sul global, nos seus países de origem ou emigração, de mulheres e menores; também partilham uma política antissindical agressiva projetada para impedir o crescimento da organização e da atividade, sistemas de controle e autocontrole estritos que vão até à proibição de conversas entre os trabalhadores no trabalho (como nalguns armazéns da Amazon), pressão de tempo muito forte, e métodos “mais um” para lidar com fornecedores (ter outro na reserva para forçar cortes nos custos unitários a cada data de vencimento). De uma forma ou de outra, todas estas medidas reforçam a tendência de que falamos. No caso da Itália, podemos citar os nomes FCA, Fincantieri, Coop e Conad, entre outros. Não há, por conseguinte, perspectiva de redução da jornada de trabalho. Pelo contrário, a superclasse dos funcionários do capital global possui armas letais com as quais pretende impedir a explosão da contradição acima referida.

Isso envolve o fomento de uma competição selvagem entre trabalhadores com emprego estável e aqueles que estão desempregados ou sem segurança no emprego, ou o fomento de uma guerra de propaganda aberta e ataques reais contra migrantes / imigrantes, rotulando-os como os verdadeiros responsáveis pelos problemas sociais causados pelas crises e políticas sociais da era “neoliberal”. Os trabalhadores nascidos no país, especialmente os mais marginais e inseguros nos seus empregos, devem enfurecer-se contra esses bodes expiatórios se quiserem salvar as suas próprias peles.

 

6) Trabalhar menos para que todos trabalhem, e todos poderão trabalhar menos – para as tarefas socialmente necessárias

Assim, um movimento operário em crise profunda enfrenta dois grandes desafios: retomar a perspectiva de uma redução geral drástica da jornada de trabalho e mobilizar-se nas primeiras fileiras da luta contra o racismo. O velho movimento operário não parece capaz de enfrentar esse desafio, nem tenta fazê-lo. Mas estou convencido de que essas questões intimamente relacionadas serão da maior importância para um movimento proletário renascido. Hoje é possível e necessário opormo-nos à dissipação da energia vital dos trabalhadores imposta pela fome insaciável do capital por mais-valia.

O caminho a seguir é indicado pela palavra de ordem de “Trabalhar menos para que todos trabalhem e todos possam trabalhar menos”. A classe trabalhadora pode e deve reivindicar para si os benefícios do enorme aumento da produtividade do trabalho das últimas décadas e da revolução tecnológica em curso, pois estes são resultados alcançados pelo “trabalhador social coletivo”. No entanto, a questão não é meramente quantitativa. De forma alguma! Muito mais do que ontem ou anteontem, uma parte crescente da produção de mercadorias é inútil, prejudicial, antissocial e antiecológica. Mészáros e Gouldner e outros antes deles – Mattick e Bordiga, por exemplo – mostraram e criticaram a capacidade do capitalismo maduro de fabricar e induzir necessidades artificiais que não correspondem às reais necessidades humanas. Isso levou ao crescimento exponencial da “produção destrutiva” (da qual a produção militar é emblemática), à pilhagem da natureza, ao consumo de luxo, ao desperdício extremo e a grandes quantidades de lixo não reciclável, como computadores e telemóveis concebidos para rapidamente se tornarem obsoletos.

A indústria financeira, as companhias de seguros, os agentes imobiliários, os gigantescos aparelhos militar-industriais e de segurança, muita da alta tecnologia e das telecomunicações demonstram esse caráter cada vez mais antissocial e antiecológico do modo de produção capitalista. A isto podemos e devemos opor o trabalho socialmente necessário para a satisfação de necessidades genuinamente humanas. Isso dá mais força e motivação à perspectiva de uma redução geral e drástica da jornada de trabalho, porque oferece a possibilidade e a necessidade de cortar uma vasta gama de produção e usar os trabalhadores dela libertados em atividades socialmente necessárias e úteis.

O mesmo se aplica ao desperdício maciço de energia vital humana, da capacidade das pessoas de compreender o mundo e do potencial de cooperação social com base na igualdade real, desperdício resultante da difusão de ideologias, políticas, leis, sentimentos, preconceitos e práticas racistas. Enorme também é o sofrimento e a dor social associados às migrações internacionais, que, a meu ver, são essencialmente migração forçada. A questão aqui não é apenas questionar as desigualdades existentes em matéria legislativa, salarial e quantitativa, mas também, e sobretudo, a divisão internacional do trabalho criada pelo colonialismo, o antigo que ainda está presente e deseja ser eterno.

Concluindo: o que está subjacente ao meu argumento é, evidentemente, a grande crise de 2008. Não apenas na sua dimensão financeira, mas como um entrelaçamento de crises económicas e ecológicas com uma crise da ordem internacional e uma crise de valores e perspectivas – uma crise de civilização, da civilização capitalista. O que temos pela frente é uma época de conflitos sociais mais agudos. E nessa época espero que juntos consigamos libertar-nos do trabalho excessivo, da insegurança existencial, do desemprego e do racismo. E usar o tempo e a energia vital libertos do trabalho forçado de hoje para desmantelar peça a peça a divisão social, sexual, antiecológica e internacional do trabalho erguida ao longo dos séculos pelo modo de produção capitalista. O objetivo é abrir o caminho para o futuro que sonhamos nos nossos sonhos mais ousados. Uma ciência social digna desse nome não pode deixar de assumir essa tarefa.

 

 

[1] Dedico este ensaio a Mario Lardieri, com quem tive intensas e repetidas discussões sobre estas questões e a quem devo a formulação sobre a redução geral da jornada de trabalho que utilizei na secção final.

[2] Professor associado de Sociologia na Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade Ca’ Foscari de Veneza.

[3] Grundrisse, Boitempo, p. 426, ligeiramente adaptado.

[4] Em 2014, Larry Page, numa conversa pública com Vinod Khosla, fundador da Khosla Ventures, admitiu não haver nenhuma necessidade de horários de trabalho tão longos (NT).