Vida ou meio de vida?

Autoria: Michael Roberts
Tradução: Fernando Ferreira

 

Há hoje 2.000 milhões de pessoas no mundo que vivem sob alguma forma de quarentena na sequência da pandemia do coronavírus. É 1/4 da população mundial. A economia mundial nunca tinha assistido a nada de semelhante. Quase todas as previsões económicas apontam para uma contração de 3 a 5 % no PIB mundial, tão mau, ou pior, do que na Grande Recessão de 2008-9.

 

De acordo com a OCDE, a produção na maioria das economias descerá, em média, cerca de 25% durante as quarentenas e estas afetarão setores que representam até 1/3 do PIB das principais economias. Por cada mês de quarentena, perder-se-ão 2 pontos percentuais no crescimento do PIB anual.

 



GRÁFICO 1: O impacto inicial de medidas de contenção será sentido em todo o mundo
Países, em percentagem do PIB a preços constantes

 

 

Esta uma forma monstruosa de provar a teoria de Marx sobre o trabalho como origem de toda a criação de valor, e cito, “Qualquer criança sabe que, se uma nação deixar de trabalhar, nem é preciso que seja um ano, um mês que seja basta, desaparecerá.” (Marx a Kugelmann, Londres, 11 de julho de 1868).

 

As quarentenas de muitas das principais economias estão a ter um efeito drástico na produção, no investimento e, acima de tudo, no emprego. Os últimos números de março sobre o emprego nos EUA são impressionantes, com uma perda mensal de 700.000 empregos e um súbito aumento do desemprego para 4,4%.

 



GRÁFICO 2: Perdas de postos de trabalho em março põe fim a uma série de 113 meses seguidos de aumento do emprego nos Estados Unidos

 

Em apenas duas semanas, 10.000 Americanos candidataram-se ao subsídio de desemprego

 

Estes números ultrapassam tudo a que se assistiu na Grande Recessão de 2008-9 e mesmo o acontecido na Grande Depressão dos anos 30.

 

A esperança, como é óbvio, é que este desastre dure pouco, porque as quarentenas serão revogadas dentro de mais ou menos um mês na Itália, na Espanha, no Reino Unido, nos Estados Unidos e na Alemanha. Na realidade, a quarentena de Wuhan termina esta semana, depois de uma paragem de 50 dias, e a China está a regressar lentamente ao trabalho, lentamente, é verdade. Noutros países (Espanha e Itália), há sinais de que a pandemia atingiu o pico e aue as quarentenas têm funcionado. Noutros ainda (Reino Unido e Estados Unidos), o pico ainda não chegou.

 



GRÁFICO 3: O número de mortes por dia na Espanha e na Itália estão a deixar de crescer, mas, no Reino Unido e nos Estados Unidos, cada dia trás mais mortes que o anterior.
Mortes por dia devidas a coronavírus (médias semanais), por número de dias decorridos desde o registo das primeiras 3 mortes.

 

Quando as quarentenas terminarem, as economias poderão regressar negócio quotidiano. É o que diz o Secretário do Tesouro norte-americano, Mnuchin: “Isto é de curto prazo. Pode durar 1 ou 2 meses, mas vai passar, e a nossa economia estará mais forte do que nunca”. Larry Summers, guru do keynesianismo, fez-se eco desta opinião: “Tenho a impressão otimista — mas é apenas uma impressão otimista — de que a recuperação pode ser mais rápida do que muitos esperam porque será uma recuperação da depressão total como a que atinge a economia de Cape Cod[1] todos os invernos ou a recuperação do PIB americano que tem lugar todas as segundas-feiras.”

 

Durante as quarentenas, vários governos anunciaram aumentos dos subsídios de desemprego e até outros subsídios para os que perderam o emprego ou foram colocados de licença até os negócios retomarem e as pequenas empresas estão, ao que parece, a obter taxas de juro mais favoráveis e empréstimos baratos para poderem vir à tona. E isto pode ser a salvação dos meios de sobrevivência durante as quarentenas.

 

Um dos problemas com estas posições é que, mais ou menos nos últimos dez anos, tantos foram os cortes no serviço público, que pura e simplesmente, não há pessoal que chegue para processar as candidaturas e avançar o dinheiro. Nos Estados Unidos, calcula-se que muitos não verão os cheques antes de junho, depois do fim das quarentenas! Mais do que isso, é claro que muitas pessoas e pequenas empresas não têm direito aos apoios por razões várias e não terão rede de segurança.

 

Por exemplo, 58% dos trabalhadores americanos dizem que não conseguirão pagar a renda de casa, ou a conta, do supermercado ou outras, se a quarentena se prolongar por até menos de 30 dias, mostra um inquérito da Society for Human Research Management (SHRM). Um em cada cinco trabalhadores disse que, com uma semana de quarentena, deixaria de poder  cumprir as suas obrigações financeiras mais básicas. Metade das pequenas empresas dos Estados Unidos não conseguirão pagar um mês completo de salários durante a quarentena. Mais de metade das pequenas empresas esperam uma perda de rendimento entre 10 e 30%.

 

Na realidade, muitas pessoas são obrigadas a trabalhar, com risco da própria vida, porque não podem trabalhar a partir de casa como trabalhadores mais bem pagos, de colarinho branco.

 



GRÁFICO 4: Tipo de trabalho durante a crise e bem-estar emocional por grupos sócio-económicos
Inquérito a 1.355 adultos norte-americanos, 27-30 de março, 2020

Muitas pequenas empresas dos setores das viagens, comércio de retalho e serviços não voltarão à atividade depois da quarentena. Mesmo empresas maiores nos setores do retalho, das viagens e da energia podem desaparecer, criando um efeito de cascata em setores inteiros da economia. Por exemplo, a Reserva Federal exige aos bancos que façam testes de esforço que assumem alguns cenários negativos, para garantirem aue os bancos aguentarão uma crise económica grave. O pior cenário pressupõe uma descida de 9,9% no PIB no segundo trimestre de 2020, com o desemprego a chegar a 10% no terceiro trimestre de 2021. Algumas estimativas da Goldman Sachs apontam para uma queda do PIB da ordem dos 30% e um aumento do desemprego para valores da mesma ordem… dentro de algumas semanas.

Há ainda empresas não muito sólidas, cujo volume de negócios e cujo lucro já não era altos antes da pandemia, que estão a emitir dívida. E, como já tive a ocasião de escrever em intervenções anteriores, mesmo antes de o vírus ter atingido a economia mundial, muitos países estavam já a caminho da recessão. O México, a África do Sul e a Argentina, do G20, e o Japão, do G7 já estavam em recessão. A Eurozona e o Reino Unido andavam lá perto e mesmo a economia mais eficiente, os Estados Unidos, estava a abrandar sensivelmente. Estava já criado o cenário para que toda essa dívida empresarial acumulada durante os anos após a Grande Recessão de desmoronasse em cessações de pagamentos.

Ora isto é ainda mais verdade nas economias empobrecidas do “Sul Global”, que assistem a uma fuga de capitais sem precedentes, da ordem dos 90 biliões de dólares, com os investidores estrangeiros a abandonarem o barco no princípio do naufrágio. E a rede de segurança oferecida pelo FMI, o Banco Mundial e quejandos oferecem uma rede de segurança curta ou mesmo inexistente. A situação vai ainda piorar no próximo trimestre e a recuperação pode estar muito mais longe do que a visão otimista dos que apontam para o segundo semestre deste ano.

É claro que as quarentenas não durarão sempre, sob pena de milhares de milhões de pessoas se verem reduzidas à miséria, e os governos gastarão cada vez mais, emitirão cada vez mais dívida e/ou imprimirão cada vez mais notas para darem subsídios e criarem ainda mais dívida. Isto não pode durar muito tempo sem produção e investimento. Haverá emprego destruído para sempre e a inflação será galopante. Entraremos num mundo de depressão permanente acompanhada de hiperinflação.

Parece que vários países europeus, encorajados por terem atingido o pico dos casos, se estão a preparar para terminarem a quarentena nos finais deste mês. Mas, mesmo que o façam, o regresso à “normalidade” levará meses, porque dependerá de testes sistemáticos para determinar se o vírus regressa, e regressará, e se poderá então ser contido ao mesmo tempo que se retoma a produção. A recuperação global será, portanto, lenta. Um estudo do IFO[2] prevê que a economia alemã pode encolher 20% este ano se a quarentena durar 3 meses, com uma recuperação subsequente muito gradual.

As últimas previsões da Goldman Sachs para os Estados Unidos mostram que o ponto mais baixo da recessão nos Estados Unidos será atingido no segundo trimestre de 2020, com o PIB 11-12 % abaixo do previsto antes do vírus. Isto significaria uma incrível projeção anual de 34% para este trimestre. A previsão aponta então para um aumento muito gradual do PIB, só podendo atingir a tendência pré-vírus perto do fim de 2021. Este padrão, que implica a “perda” de quase 2 anos nos EUA, tem reunido o consenso nas últimas previsões económicas. Espera-se um padrão semelhante na eurozona, que vive um colapso da produção industrial mais vincado do que na crise do Euro de 2012.

Mas esta evolução gradual é a única ‘hipótese ótima’, dizem muitos economistas: “é importante notarmos que a dureza da quarentena, a sua duração e os custos económicos e sanitários a ela associados dependem de modo crítico da capacidade do sistema de saúde para lidar com a epidemia (testes, isolamento dos vulneráveis, etc.) e da capacidade do sistema económico para navegar durante um período de suspensão da atividade económica sem comprometer a sua estrutura.”

Poder-se-iam ter evitado as quarentenas? Parece cada vez mais claro que sim. Quando apareceu o COVID-19, os governos e os sistemas de saúde deveriam estar prontos. Os epidemiologistas têm vindo a avisar-nos desde há anos. Como já tive a ocasião de dizer, o COVID-19 não era um “desconhecido desconhecido”. No início de 2018, numa reunião na Organização Mundial de Saúde em Genebra, um grupo de peritos (o R&D Blueprint[3]) criou a designação “Doença X”. Predisseram que a próxima pandemia seria causada por um agente patogénico novo e desconhecido, que infetaria pela primeira vez os seres humanos. A Doença X resultaria provavelmente de um vírus de origem animal, e apareceria numa região do mundo em que o desenvolvimento económico leva à proximidade entre seres humanos e animais selvagens.

Mais recentemente, no passado setembro, as Nações Unidas publicaram um relatório avisando de uma “ameaça muito real” de uma pandemia que poderia matar até 80 milhões de pessoas. O relatório referia um agente patogénico mortal, disseminado por todo o mundo por via atmosférica, que poderia destruir até 5% da economia mundial. “A prontidão é prejudicada pela falta continuada de vontade política a todos os níveis. Embora as autoridades de saúde respondam às crises sanitárias quando pressionadas pelo medo e pelo pânico, a maior parte dos países não dedicam energia e recursos suficientes para impedir que um surto se transforme num desastre.” O relatório referia que os últimos 30 anos são uma história em que os avisos dos cientistas têm sido deliberadamente ignorados.

Os governos têm ignorado os avisos porque, por cálculo, assumem que o risco não é grande e que, portanto, o investimento em prevenção de pandemias e o seu confinamento não se justifica. Na verdade, cortam o investimento nesses setores. Isto recorda-me a decisão do aeroporto de Heathrow, no Reino Unido, de comprar só dois limpa-neves, porque, como a neve e o gelo são tão raros em Londres, a despesa não se justificava. Quando chegou um inverno particularmente duro, o aeroporto foi apanhado desprevenido e tudo parou.

Como poderíamos ter evitado as quarentenas? Poderíamos, se o governo tivesse podido testar toda a gente para determinar a infeção, se tivesse podido fornecer equipamento de proteção e exércitos de trabalhadores da saúde para fazer os testes e pôr de quarentena e isolar os infetados. Os velhos e os doentes deveriam ter sido isolados em casa e cuidados pela assistência social. E, assim, todos os outros teriam podido continuar a trabalhar, como os trabalhadores essenciais hoje fazem. Pequenos países como a Islândia (e Taiwan, e a Coreia do Sul) com sistemas de saúde de alta qualidade conseguiram fazê-lo. A maioria dos países com sistemas de saúde privados ou depauperados não conseguiram. E as quarentenas passaram a ser o único sistema para salvar vidas.

 

GRÁFICO 5: Camas de cuidados intensivos por 1.000 habitantes em 2016

 

A política das quarentenas serve apenas parcialmente para salvar vidas; é também para evitar que os sistemas de saúde dos países fique assoberbado de casos, deixando aos médicos uma escolha de Hobson[4]: escolher quem recebe cuidados e quem morre. O objetivo é “aplanar a curva” do aumento dos casos de infeção e de morte, para que o sistema de saúde possa responder. O problema é que “aplanar a curva” da pandemia com quarentenas aumenta a curva, para baixo, dos empregos e dos rendimentos de muitos milhões.

 



GRÁFICO 6: Políticas de confinamento aplanam a curva sanitária, mas acentuam a da recessão

 

E, no entanto, a História mostra que, se deixássemos a pandemia descontrolar-se, ela também destruiria a economia. Um estudo recente da Reserva Federal, sobre o impacto da Gripe Espanhola nos Estados Unidos, mostrou que a pandemia, nessa altura descontrolada, reduziu a produção industrial em 18%. Então, no fim de contas, a quarentena parece ser menos má. Parece que é um jogo impossível de ganhar.

 

Vida ou meio de vida? Alguns peritos “neoliberais” de direita pensam que a economia capitalista é mais importante do que as vidas humanas. Na verdade, os que morrem são maioritariamente os velhos e os doentes. Não contribuem muito para a produção capitalista; são mesmo um fardo sobre a produtividade e os impostos. Num verdadeiro espírito maltusiano, nas suite executivas das instituições financeiras, a maioria pensa que os governos deveriam deixar o vírus multiplicar-se e, quando os jovens e sãos fossem imunes, o problema estaria resolvido.

 

Este ponto de vista liga-se também aos estudos de alguns peritos de saúde que dizem que, todos os dias, os médicos, nos hospitais, têm de tomar decisões sobre a relação custo-eficácia, do ponto de vista dos resultados sanitários. Deverão salvar todos os velhos com COVID-19 se isso significar o adiamento do tratamento de um doente oncológico mais jovem, porque as camas e o pessoal foram desviados para o tratamento da pandemia?

 

O raciocínio é o seguinte: “Se os recursos não são ilimitados — devemos concentrar-nos em fazer o que pode trazer o maior bem (salvar o máximo de vidas) gastando o mínimo montante possível. Ou usar o dinheiro que temos para salvar o máximo de vidas.” A Economia da Saúde mede o custo por QALY. Um QALY é um ano de vida ajustada à sua qualidade. Um ano de vida com a máxima qualidade de vida possível é um QALY. “Quanto está disposto a pagar por um QALY? A resposta atual, no Reino Unido, é que o SNS recomenda que se paguem intervenções médicas se custarem menos do que £30.000. Mais do que isso é considerado demasiado caro e, no entanto, o orçamento do Reino Unido para o combate ao vírus é de 350.000 milhões de libras, quase 3 vezes o orçamento deste ano para todo o SNS. Vale a pena pagar tal preço?” Este perito calculou que “o custo de salvar uma vítima do COVID é maior do que onze vezes o que o SNS aprovaria.” Aos mesmo tempo, há doentes oncológicos que não são tratados, operações à anca são adiadas, doentes diabéticos e cardíacos não são atendidos.

 

Tim Hartford, no Financial Times, exprimiu uma opinião diferente. Chamou a atenção para o facto de que a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos atribui o valor estatístico de 10 milhões de dólares, ou 10 dólares por micromorte (um risco de uma morte por um milhão de pessoas) evitada. Se  presumirmos que 1% das infeções resultam em morte, estamos a falar de uma condição de 10.000 micromorte. Por esta bitola, estar infetado é 100 vezes mais perigoso do que parir, ou tão perigoso como dar duas voltas e meia ao mundo em moto. Para um idoso ou uma pessoa vulnerável, é muito mais perigoso. À taxa da EPA, 10 dólares por micromorte, valeria a pena gastar 100.000 dólares para prevenir uma infeção por COVID-19. Não é necessário um modelo epidemiloógico complexo para predizer que, se não tomarmos medidas sérias para parar a expansão do vírus, mais de metade da população mundial vai der infetada. Is to sugere 2 milhões de mortes nos EUA e 500.000 na Grã-Bretanha — assumindo, repito, uma taxa de mortalidade de 1%. Se uma quarentena económica nos Estados Unidos salvar a maioria destas vidas e custar menos do que 20 biliões de dólares, então é um bom negócio. Para mim, o ponto chave é que este dilema do “custo” de uma vida teria sido reduzido se o financiamento dos servoços de saúde tivesse sido o exigível, suficiente para ter uma “margem de manobra” em caso de crise.

 

Há quem argumente que as quarentenas e toda esta despesa em saúde se baseiam num pânico desnecessário que tornará o remédio pior do que a doença. Dizem estes que o COVID-19 não é pior do que uma gripe forte, na sua taxa de mortalidade, e terá muito menos impacto do que muitas outras doenças, como a malária, o HIV ou o cancro, que matam cada vez mais de ano para ano. Portanto, defendem, acabemos com esta loucura de quarentenas, protejamos os velhos, lavemos as mãos e rapidamente veremos que o COVID não é nenhum Armagedeão.

 

O problema com este argumento é que as evidências desmentem que o COVID não seja pior do que a gripe sazonal. É verdade que, até agora, contamos 70.000 mortes até abril, 40.000 menos do que com a gripe deste ano e só 1/4 das mortes com malária.

 



QUADRO 1: Mortes no mundo de 1 de janeiro a 25 de março de 2020

 

Mas o vírus ainda não desapareceu. Até agora, as evidências sugerem que a taxa de mortalidade é, pelo menos, de 1%, 10 vezes mais do que a gripe sazonal, e tem uma taxa de contágio muito maior. Se o COVID-19 não fosse contido, contagiaria cerca de 70% da população até a imunidade de grupo ser suficiente para abrandar a gravidade do vírus. Isto significa pelo menos 50 milhões de mortos. A mortalidade anual duplicaria na maior parte dos países. (ver gráfico).

 



GRÁFICO 7: Taxas anuais de mortalidade (por 1.000 habitantes)
Taxa actual frente a cenário a 12 meses.

 

Mais do que isso, este vírus é novo, e diferente dos vírus da gripe e não há ainda vacina. É muito provável que volte e que tenha mutações, o que exigirá ainda mais confinamento.

 

Alguns governos arriscam a vida das populações, tentando evitar quarentenas totais, ou mesmo parciais para preservar o emprego e a economia. Alguns governos estabeleceram sistemas de testes suficientes e controle de contactos, junto com medidas de auto-confinamento, e afirmam que a economia pode continuar a funcionar durante a crise. Infelizmente para eles, mesmo que isto funcione, as quarentenas noutros locais destruíram de tal modo o comércio e o investimento a nível global, que nem estes países podem evitar a derrocada com as cadeias de fornecimento globais paralisadas.

 

Há outro argumento contra o benefício das quarentenas para salvar vidas. Um estudo de alguns “peritos em segurança” da Universidade de Bristol calcula que uma política de “tudo como dantes” levaria a que a epidemia terminasse em setembro de 2020, apesar de causar, no Reino Unido, quase tantas mortes como causou a Segunda Guerra Mundial. Mas, ao contrário, as quarentenas poderão causar uma diminuição tal no PIB per capita que , do remédio, mais mortes poderiam resultar do que da doença.

 

Mas o estudo de Bristol é só uma avaliação de risco. Estudos de saúde sérios mostra que as recessões não aumentam a mortalidade. Uma recessão — uma descida temporária do PIB, por um espaço de tempo curto não reduz forçosamente a expectativa de vida, e na verdade, normalmente não o faz. Por muito estranho que pareça, as evidências de que dispomos mostram que as recessões, na realidade, levam as pessoas a viver mais tempo. É verdade aue o número de suicídios aumenta, mas mortes por outras causas, como acidentes de viação e doenças relacionadas com o álcool, diminuem.

 

O economista da saúde marxista Dr. José Tapia (também autor de um dos capítulos do nosso livro World in Crisis conduziu vários estudos sobre o impacto das recessões na saúde. Chegou à conclusão de que as taxas de mortalidade nos países industrializados tendem a subir durante os períodos de expansão económica e a descer durante os de recessão. O número de mortes atribuídas a doenças cardíacas, pneumonia, acidentes, doenças de fígado e senilidade — o que totaliza cerca de 41% do total de mortes — tendem a flutuar de maneira pro-cíclica, aumentando na fase de expansão. Os suicídios, bem como doenças atribuíveis à diabetes ou à hipertensão são responsáveis por cerca de 4% do total de mortes e flutuam de maneira contracíclica, aumentando nas recessões. As mortes atribuídas a outras causas, que são cerca de 50% do total, não mostram uma relação claramente definida com as flutuações da economia. “Todos estes efeitos da expansão económica ou da recessão na mortalidade observada, por exemplo, durante a Grande Depressão ou a Grande Recessão são pequenos se comparados com os efeitos de uma pandemia na mortalidade”, disse Tapia numa entrevista.

 

Em suma, as quarentenas poderiam ter sido evitadas se os governos tivessem reconhecido o risco crescente de uma pandemia provocada por um novo agente patogénico. Mas ignoraram esses avisos para “poupar dinheiro”. As quarentenas poderiam ter sido evitadas se os sistemas de saúde tivessem sido convenientemente financiados, equipados, e dotados de pessoal, em vez de serem destruídos e privatizados durante décadas para reduzir custos e aumentar a rentabilidade do capital. Mas não foram.

 

E há a visão ainda mais geral. Se houver bombeiros e equipamento que chegue, pode-se extinguir um fogo florestal, embora com grande dano, mas, se as mudanças climáticas fizerem aumentar sistematicamente a temperatura, os fogos suceder-se-ão. Estes novos agentes patogénicos letais entram no corpo humano porque a busca insaciável do lucro na agricultura e na indústria levou a considerarmos a natureza como uma matéria prima, aniquilando espécies e trazendo os perigos da natureza para mais próximo da humanidade. Mesmo que esta pandemia seja, no fim de contas, vencida (o mais tardar até ao fim do ano) e mesmo que os governos gastem mais em prevenção e contenção no futuro, só o fim da pulsão  capitalista pelo lucro poderá recolocar a natureza em harmonia com a humanidade.

 

Por agora, resta-nos salvar vidas ou meios de vida e os governos não gerirão nenhuma delas.


[1] Cape Cod: Estação balnear muito concorrida, no Massachussets.
[2] IFO: Leibniz-Institut für Wirtschaftsforschung an der Universität München, Instituto de Investigação Económica, da Universidade de Munique
[3] R&D Blueprint: Plano de contingência da OMS para responder a pandemias
[4] Escolha de Hobson: Peça de teatro de Harold Brighouse, de 1916, em que a personagem principal é colocada perante uma falsa escolha, só com uma saída.